segunda-feira, 9 de junho de 2014

Colágeno, uma nova adesão a velhos erros

Silvia Gobbo, Francisco Quiumento


Uma breve introdução à substância alvo deste texto


O termo colágeno deriva de ”aquele que gera cola”, sendo, como matéria-prima, das mais antigas substâncias de origem animal relativamente isoladas usadas pelo homem, inicialmente, na produção do que hoje chamamos de “adesivos de contato”, que incluem a vulgarmente conhecida “cola de sapateiro”.


Uma rápida lida na Wikipedia em inglês já nos dá um quadro de sua importância como proteína constituinte das estruturas dos animais mais complexos:


O colágeno é um grupo de proteínas de ocorrência natural encontradas em animais, especialmente na carne e tecidos conjuntivos de mamíferos. É o principal componente do tecido conjuntivo, e é a proteína mais abundante em mamíferos, perfazendo cerca de 25% a 35% do conteúdo total de proteínas do corpo. O colágeno, sob a forma de fibrilas alongadas, é encontrado principalmente em tecidos fibrosos , tais como tendões, ligamentos e pele, e também é abundante na córnea, cartilagens, ossos, vasos sanguíneos, no intestino, e nos discos intervertebrais. O fibroblasto é a célula mais comum que cria o colágeno. No tecido muscular, que serve como um componente principal do endomísio*. O colágeno constitui 1-2 por cento do tecido muscular, e é responsável por 6% do peso dos músculos tendinosos. A gelatina, que é usada em alimentos e na indústria, é colágeno que passou pelo processo irreversível de hidrólise.


Acreditando que sabemos agora de que proteína trataremos, vamos para o problema...

* Camada de tecido conjuntivo que encobre uma fibra muscular e é composta principalmente de fibras reticulares, contendo também capilares, nervos e vasos linfáticos. - pt.wikipedia.org


Surge um “novo” argumento por design em cena


Tem surgido a divulgação, por parte de defensores do dito Design Inteligente (D.I.), de que o colágeno no corpo em seus diversos tecidos “mais simples” é de uma forma e quando chega na retina (a velha associação com a complexidade do olho) assume forma em rede e que isso “parece ter sido criado”. Esta argumentação é seguida da divulgação do vídeo abaixo: [Nota 1]




Devemos lembrar primeiramente que os defensores do D.I. não conseguiram sucesso com este tipo de estratégia com a hemoglobina, que é uma proteína mais complexa e de atividades mais específicas, envolvidas com reações químicas fundamentais para diversas formas de vida, e devemos alertar como obteriam sucesso com uma proteína estrutural, e ainda mais alertamos, como iriam tentar “refutar evolução” com uma proteína que está presente até em esponjas, com sua baixíssima diferenciação celular. Para o olho,e deveríamos aqui dizer estruturas relacionadas com a visão, também não obteriam sucesso, pois estas estruturas encontram-se já nos cnidários [Nota 2] , que já apresentam estruturas com estas funções, ainda que não relacionadas evolutivamente com os sistemas de visão dos animais, usemos aqui a própria linha de discursos dos defendores do D.I., ditos “mais complexos”.[Nota 3]


Uma simples consulta em referências triviais já nos mostra que o colágeno ocorre em poríferos:




Ou em cnidários:




Polyorchis pencillatus, já com as estruturas vermelhas que são sensórias à luz - tutorvista.com


Existiria aqui uma afirmação por parte dos defensores do DI de que o colágeno naquela posição/função contrariaria sua estrutura tridimensional mais comum, “normal”.


A formação de estruturas terciárias e quaternárias do colágeno similares as de todos os cordados - leia-se “incluindo os humanos - já se dá nos peixes, e só isso, já basta para sustentar evolução, ou melhor, não refutar o processo evolutivo - especiação, ancestralidade comum, “macroevolução”, etc. Para entender-se a banalidade disto, basta se observar seus olhos, no fundamental, em coisa alguma diferentes dos nossos, porém, em concordância com o processo evolutivo, diferentes dos olhos dos moluscos e dos artrópodes, os três designs básicos das formas de vida animal ainda existentes na Terra, ainda vivos, “superiores” (perceba-se as aspas) aos vermes.[Ver Anexos]


Anatomia do olho de um peixe, já com todas as estruturas básicas dos olhos dos vertebrados (earthlife.net).


Poderíamos questionar que os defendores do D.I. estão afirmando que uma molécula, uma “afirmado colágeno” teria normalmente mais de um hábito de crescimento, usando um termo da Teoria do Caos, um “gesto”, e que o que determinaria este hábito de crescimento seria uma orientação de “design externo” posterior.


A questão é que há aqui um simplificação grosseira da questão por parte dos defensores do D.I.. Como toda proteína, sua classificação refere-se a uma estruturação básica, praticamente à sua composição e funções, não a uma formulação estrita, que só teria nexo no que tange à moléculas simples .Cada uma das 3 "fitas" de proteínas que é o colágeno são formadas quase inteiramente - destaquemos este inteiramente, mais uma vez, pelo aminoácido glicina (que representa aproximadamente um terço de sua composição/seqüência), restando como outros aminoácidos a prolina e lisina, e mais dois aminoácidos que são modificados após serem colocados pelos ribossomos - os construtores proteicos por excelência, a hidroxiprolina e a hidroxilisina.


A estrutura tripla do colágeno, sua ampliação e um modelo “bolas e varetas” de seção de suas moléculas (editado de cueronet.com).


Desta estruturação, que chamamos como classificatório genericamente de “colágeno”, surgem conformações espaciais, tridimensionais, as mais diversas, com as mais diversas aplicações nos organismos animais, desde as mais básicas, estruturais, como a pele que a todos cordados reveste, até as mais especializadas, como a focada - perceba-se a ironia - pelos D.I.stas, retina.


Assim, não existe “um colágeno”. Existem inúmeros “colágenos”, inúmeros polímeros de aminoácidos com uma determinada composição básica, um jogo combinatório de determinados aminoácidos, construídos com determinados fins, orientados nesta construção pela ação codificadora do DNA.


Observação: Esta ação codificadora do DNA, ocorre em diversos outros casos de proteínas no reino animal, em plena concordância com o processo evolutivo, como no caso das variedades de queratina, alfa e beta, entre as aves e dinos penados, vs demais vertebrados, que não possuem a betaqueratina.[Nota 4]




Estes ”hábitos de crescimento” são determinados por atratividades eletromagnéticas da polimerização, da própria conformação da molécula, pelas nuances de atrações e repulsões proporcionadas pela ordenação dos aminoácidos em jogo. Aqui entra a universal na ação Mecânica Quântica, da conformação por fim dos orbitais dos átomos envolvidos. Nada além da Física.


Só ocorreria um “milagre” - no sentido de fenômeno contrário às leis da natureza - se a proteína assumisse uma forma tridimensional impossível de assumir pelas leis da química (perdão pela nossa redundância aqui necessária).


Esquema da síntese das fibras de colágeno (webs.uvigo.es).


Como deve-se destacar na crítica e refutação ao vídeo de Alexander Tsiaras já apresentada em




Não é mágica, e com certeza não é uma divindade - é química.


Qualquer rápida pesquisa sobre estas estruturações específicas do colágeno já fornece referências de pesquisas e sólidos resultados no campo:




Uma recapitulação de por onde já passamos


1) Temos que o colágeno em si não é argumento contra a evolução.


2) Mostramos que como sua organização no olho já se dá nos filos "acima e incluindo”  peixes (e isto basta) sustentando evolução.


3) A organização em estruturas terciárias e quaternárias também já se dá nos peixes, que possuem retina, córnea e todos os "usos do colágeno".


4) Mostramos que as interações no polímero produz suas estruturações superiores.


Noutras palavras: Se o colágeno forma a retina de peixes, podemos ser, assim como uma foca ou um cavalo, peixes modificados, no que refere-se às nossas retinas.


Logo, apresentar colágeno, uma banal proteína comum entre os animais, ou apresentar que sua estruturação em determinadas conformações em determinada estrutura que compartilhamos com parentes próximos e ancestrais, seja um argumento contra a evolução é um argumento sem nexo, e afirmar que seja evidência da ação de uma força exterior/superior à natureza, apenas aderir a velhos argumentos mais que inúteis e surrados, os argumentos teleológicos.


Os velhos e surrados argumentos do D.I.


Como deve-se sempre destacar, a ocorrência de determinada estrutura, mesmo bioquímica, profunda, irredutível em sua complexidade nos seres vivos não elimina o processo evolutivo, mesmo com a inegável ocorrência de uma ação externa de design, como bem trata Behe, autor mais popular do D.I..


Por outro lado, uma argumentação de complexidade implica em design externo, trata-se apenas de como dizemos, do argumento do relojoeiro de Paley “requentado”, as sempre correlatas à argumentação pelo D.I. da falácia do apelo à ignorância e da argumentação negativa, argumentos refutados à exaustão por H. Allen Orr, Massimo Pigliucci e outros.


Este tipo de argumentação é derrubado pela simples pergunta, implícita na argumentação contra os argumentos teleológicos por Hume:


Como pode-se afirmar que não tenha havido miríades de erros, no caso específico, até a reticulação do colágeno nesta estrutura ter surgido?


O maior problema de qualquer argumento teleológico não é com "evidências disto ou daquilo", e sim com o erro de interpretação basal que Hume fez a todos ver.[Nota 5]


Seleção natural, evidentemente, é o mecanismo de filtro que está como filtro da variabilidade produzida pela sempre instável genética.


Estas questões simples convergem para outra pergunta simples, que deve ser direcionada sempre a quem acha, sabe-se lá com que raciocínio, que evolução seria derrubada como fato, independente de seus mecanismos, pela evidência de ação de um designer:


Sobre qual forma de vida o designer agiu até, neste caso, o "retículo colaginoso" da retina estabelecer-se lá? Existe ou existiu esta forma de vida? Então evolução ocorre!


Lamentamos, mas neste ponto, um Q.E.D..


Assim, pelo conjunto de erros nesta argumentação, agora neste caso específico e mais uma vez improdutivo, repetimos aqui a observação de Orr sobre Behe, lembrando o local do túmulo de Darwin:


Em qualquer caso, sequências de tais contradições comem pelas beiradas no caso de Behe, e, no final, tornam difícil acreditar que Darwin vai ter companhia na Abadia de Westminster em breve.


De maneira similar, podemos afirmar que os mesmos erros, basais e desconexamente crassos, antigos e maquilados de novos, repetidos em nossas terras, ainda que afirmados retumbantemente como “a maior descoberta de todos os tempos”, não colocarão quem quer que seja que pelo mesmo caminho trôpego enverede em qualquer de nossos grandes mausoléus dedicados a nossos heróis, seja em Brasília, qualquer capital ou cidade do interior.


Todo aquele que faz retumbantes afirmações sobre suas descobertas, em ciência, desde sua primeira apresentação, está fadado, ainda sem nenhuma exceção na história da ciência, a se colocar no palco do ridículo dos mais patéticos fiascos, e a causa disto é a não "revisão por seus pares", razão pelo qual a ciência tem se mostrado a vela no escuro cuja luz ainda não pôde (sic) ser de forma nenhuma ofuscada pela chama da fogueira das vaidades.

Notas


1. Alexander Tsiaras não é um cientista, observe-se sua biografia: curiosity.discovery.com - Alexander Tsiaras

2. Para evolução dos “olhos” dos cnidários:

3. Para ver um quadro amplo da evolução do olho em vários filos, recomendamos:



4. Recomendamos, para entender a questão da queratina na evolução de aves a partir de dinos, o texto de Silvia Gobbo, editado e comentado por Francisco Quiumento:




5. Para os erros da argumentação teleológica, apontados por Hume, basta ler a trivial Wikipédia:




Anexos


1. Quadro geral da evolução das estruturas visuais, com destaque para a evolução do olho dos cnidários:




Nenhum comentário: