sexta-feira, 19 de maio de 2017

Poincaré, sobre evolução, origem da vida e “leis” científicas - 2



Capa de uma edição em inglês - Goodreads


“E já que pronunciei a palavra “evolução”, desfaçamos mais um mal-entendido. Dizemos com frequência “Quem sabe se as leis não evoluem, e se não descobriremos um dia que, no período carbonífero, não eram o que são hoje?”. O que devemos entender com isso? Deduzimos o que cremos saber do estado passado de nosso globo do seu estado presente. E essa dedução se faz por meio das leis supostamente conhecidas. Sendo a lei uma relação entre o antecedente e o consequente, permite-nos, com a mesma facilidade, deduzir o consequente do antecedente, isto é, prever o futuro, e deduzir o antecedente do consequente, isto é, deduzir o passado do presente.”

Na verdade, não temos como dizer, mesmo com as observações astronômicas (que veem, lembremos, o distante passado) que as lei da natureza se comportem estavelmente no tempo.

Num exemplo destacado, não podemos dizer que E=mc² assim o é para toda a história do universo, tanto para o passado quanto para o futuro. Esta equação pode ter constantes escondidas (de nós, ainda) que não percebemos, nem pela experimentação e observação, nem por desconhecermos certas premissas de nossas teorizações físico-matemáticas.
Exatamente nesse campo, operam teorias como a VLS (Variable Speed of Light), colocando que talvez para certas temperaturas e densidades a natureza comporte-se com variações do que seja a Relatividade. Por analogias, seriam teorizações que lembram as correções para altas velocidade e altos campos gravitacionais que a Relatividade fez para a Mecânica de Newton.

“Pela lei de Newton, o astrônomo que conhece a situação atual dos astros pode deduzir, a partir desta, sua situação futura, e é o que faz quando constrói efemérides; e pode igualmente deduzir, da situação atual, sua situação passada. Os cálculos que assim poderá fazer não poderão informá-lo de que a lei de Newton deixará de ser verdadeira no futuro, já que essa lei é precisamente seu ponto de partida; também não poderão informá-lo de que ela não era verdadeira no passado.”
O interessante é que em Poincaré se encontram alguns dos embriões do que seriam as implicações do “problema dos três pontos”, mostrando que para intervalos de tempo mais amplos, sistemas como o sistema solar não são estáveis, e nessa instabilidade, são um tanto imprevisíveis (e cada vez mais imprevisíveis na medida que o intervalo de tempo tratado expande-se).

Façamos uma rápida tradução:


O problema de encontrar a solução geral para o movimento de mais de dois corpos em órbita no sistema solar havia escapado de matemáticos desde a época de Newton. Isto foi originalmente conhecido como “o problema de três corpos” e mais tarde o “problema de  n-corpos”, em que n é número qualquer de mais de dois corpos em órbita. A solução para  n-corpos foi considerada muito importante e desafiadora no final do século XIX. De fato, em 1887, em homenagem ao seu aniversário de 60 anos, Oscar II, Rei da Suécia, aconselhado por Gösta Mittag-Leffler, estabeleceu um prêmio para quem conseguisse encontrar a solução para o problema. O anúncio foi bastante específico:

“Dado um sistema de arbitrariamente muitos pontos de massa que atraem a cada um de acordo com a lei de Newton, sob a suposição de que não há dois pontos que nunca colidem, tentar encontrar uma representação das coordenadas de cada ponto como uma série em uma variável que é alguma função conhecida de tempo e para todos cujos valores da série converge uniformemente.”

Em caso do problema não poder ser resolvido, qualquer outra contribuição importante para a mecânica clássica seria então considerada digna do prêmio. O prêmio foi finalmente concedido a Poincaré, mesmo que ele não tenha resolvido o problema original. Um dos juízes, o distinto Karl Weierstrass, disse: "Este trabalho não pode, efetivamente, ser considerada como fornecendo a solução completa da questão proposta, mas que não deixa de ser de tal importância que a sua publicação vai inaugurar uma nova era na história da mecânica celeste." (A primeira versão de sua contribuição ainda continha um erro grave; para mais detalhes veja o artigo de Diacu). A versão finalmente impressa continha muitas ideias importantes que levaram à teoria do caos. O problema como referido inicialmente, finalmente, foi resolvido por Karl Sundman para n = 3, em 1912 e foi generalizado para o caso de n> 3 corpos Qiudong Wang na década de 1990.

Ref.:

Diacu, F. (1996), "The solution of the n-body Problem",The Mathematical Intelligencer, 18 (3): 66–70, doi:10.1007/BF03024313

Recomendo: en.wikipedia.org - N-body problem

“Ainda no que concerne ao futuro, suas efemérides poderão ser um dia verificadas, e nossos descendentes talvez reconheçam que elas eram falsas. Mas no que concerne ao passado, o passado geológico que não teve testemunhas, os resultados de seu cálculo, como aqueles de todas as especulações em que procuramos deduzir o passado do presente, escapam, por sua própria natureza, a todo tipo de controle. De modo que se as leis da natureza não fossem as mesmas na idade carbonífera e na época atual, jamais poderíamos sabê-lo, já que só podemos saber dessa idade aquilo que deduzimos da hipótese da permanência dessas leis.”

Realmente, para questões físicas, químicas, a própria Geologia, não temos problema que as leis físicas (de onde tudo deriva) comportem-se com a estabilidade que vemos hoje. Mesmo a história da Terra não entra nos aspectos de uma possibilidade por densidade e temperatura de todo universo influírem nessas conjecturadas variações.

E como podemos afirmar tal coisa?

Exatamente pelas observações astronômicas, onde há muito já ultrapassamos a visualização de tempos-distâncias da escala de 4,5 bilhões de anos.

Retomemos dois pontos meus:

“Dado que paleociências não lidam com observações diretas dos fenômenos que ocorreram no passado não observável, mas sim com os seus efeitos, elas são muitas vezes referidas como ciências históricas. Isso diferencia-as da ciência empírica que se baseiam principalmente na possibilidade de realizar várias vezes o experimento. Como não é possível viajar de volta no tempo e observar diretamente os fenômenos passados, estas ciências são dependentes de pressupostos que são, em princípio, não absolutamente verificáveis. Assim, a visão de mundo do cientista, as considerações sociológicas e psicológicas, e a pressão política pode desempenhar um papel preponderante no processo de seleção dessas hipóteses explicativas, bem como na interpretação dos resultados atuais e os efeitos dos fenômenos observados no passado.”

Cleland, C.E. (September 2002). "Methodological and Epistemic Differences between Historical Science and Experimental Science" (PDF). Philosophy of Science 69: 474–496.

Scientia est Potentia - Filosofia e Evolução e a Evolução da Filosofia

“Logicamente, devemos destacar que ainda não temos máquina do tempo para realizar observações, para de uma maneira empírica poder testar o que aconteceu há milhões de anos, um a-historicismo do materialismo mecanicista, especialmente, no caso, na paleontologia, igualmente aplicável em geologia, astrofísica e cosmologia, ciências com afirmações históricas, no caso, respectivamente, a história da vida, a história da Terra, do sistema solar e dos demais corpos celestes e do próprio universo. “

Scientia est Potentia - Mostre-me o universo... I

Como seguidamente relembro alguns, mesmo o grande Popper errou nisso.


“Dirão talvez que essa hipótese poderia levar a resultados contraditórios, e que seremos obrigados a abandoná-la. Assim, no que concerne à origem da vida, podemos concluir que sempre houve seres vivos, já que o mundo atual nos mostra sempre a vida brotando da vida; e podemos concluir também que nem sempre houve vida, já que a aplicação das leis atuais da física no estado presente de nosso globo nos informa de que houve um tempo em que esse globo era tão quente, que a vida nele era impossível. Mas as contradições desse tipo sempre podem ser eliminadas de duas maneiras: podemos supor que as leis atuais da natureza não são exatamente aquelas que admitimos; ou então, supor que as leis da natureza são atualmente aquelas que admitimos, mas que nem sempre foi assim.”

Aqui, percebemos a influência da “lei da biogênese”, destacadamente a partir de trabalhos de Pasteur, destruindo a geração espontânea, mas ainda num tempo que não se entendia a biopoese nem em seus mínimos fundamentos, como a escala planetária, os tempos de reação, etc.
"La génération spontanée est une chimère" - Louis Pasteur
("A geração espontânea é uma quimera").

Poincaré, aqui, parte de premissas que são falsas, mas entendidas no seu tempo, curiosamente, parece-me, o colocam numa posição de interessante “demarcação”.

Evidentemente, a “lei da biogênese” não é mais sequer uma lei física, uma lei química (e estas são no fundo leis físicas) e sequer um real impedimento a ser tratado, pois nosso conhecimento a tornou, como afirmação, uma questão na realidade obsoleta.

Notemos que ele mesmo aponta os princípios - premissas verdadeiras - que apontam, por exemplo, que obviamente um elefante não existiria num determinado ponto no passado, e mesmo uma bactéria, a mais simples produzida pela própria biopoese, poderia existir.

“É claro que as leis atuais jamais serão suficientemente bem conhecidas para que não se possa adotar a primeira dessas duas soluções, e para que sejamos forçados a concluir pela evolução das leis naturais.”

Imaginemos uma mente como a de Poincaré ao nosso lado, com o que hoje sabemos da história da Terra e do universo, e os mecanismos e geoquímicos e bioquímicos que já conhecemos. Lembremos que sequer a genética era realmente conhecida aos tempos de Poincaré.

“Por outro lado, suponhamos uma tal evolução: admitamos, se quiserem, que a humanidade dure o bastante para que essa evolução possa ter testemunhas. O mesmo antecedente produzirá, por exemplo, consequentes diferentes no período carbonífero e no período quaternário. Evidentemente, isso quer dizer que os antecedentes são mais ou menos iguais; se todas as circunstâncias fossem idênticas, o período carbonífero se tornaria indiscernível do período quaternário.”
Primeiro, perdoemos os termos de períodos geológicos de Poincaré, não são os atuais os mesmos de seus tempos. Em segundo, excluamos afirmações sobre “leis físicas”, o básico do comportamento geológico da Terra manteve-se estável esses últimos três bilhões de anos, onde se dão significativas variações das formas de vida da Terra. O que produzia percepções de variações nos fósseis da Terra ao longo de sua história, produzindo até os termos dos períodos geológicos aos tempos de Poincaré e ainda hoje é a sucessão de flora e fauna (e ironizando meus amigos das biológicas, “fungia”) que sempre ocorreu na Terra, exatamente pois a vida evolui. As características anteriores a uns 3,7 bilhões de anos, essas realmente significativas, de composição da atmosfera e oceanos, realmente, marcam significativas diferenças, e retrocedendo, sequer dispúnhamos de algo chamável de oceanos, pois a temperatura não permitia água líquida.

Uma observação: As variações de composição da atmosfera, como a destacada do Carbonífero, não fazem sombra às enormes diferenças com a atmosfera dos períodos anteriores a biopoese, pois, coloquemos a coisa mais importante, a própria modificação de redução de metano e abundância de oxigênio só foram possíveis graças às diversas formas de vida.

Uma segunda observação: A certeza que se dá de termos um passado “ígneo”, de alta temperatura na superfície ao ponto de nossa crosta terrestre ainda não existir, é a absorção da energia cinética dos planetesimais  como calor  na formação do sistema solar, e mais adiante a própria formação da Lua, cada vez mais confiável de ter se dado por um grande impacto, com um corpo da escala de Marte. A vida só foi possível após a absorção desse calor em novos impactos ter sido equilibrada com a perda de radiação para o passado e na dissipação para toda a crosta, atmosfera e até os já oceanos. Somos frutos, pois, de um “resfriamento”.


“Evidentemente não é isso que se supõe. O que permanece é que tal antecedente, acompanhado de tal circunstância acessória, produz tal consequente; e que o mesmo antecedente, acompanhado de outra circunstância acessória, produz outro consequente. O tempo não tem influência na questão.”
Aqui, exatamente pela pouca cultura sobre a história da Terra, do sistema solar e da vida por Poincaré, ele erra, mas algumas leis gerais podem ser percebidas, ainda atuantes, as leis da Termodinâmica e as implicações da gravitação, e nos basta a de Newton.


“A lei, tal como a teria enunciado a ciência mal informada, e que tivesse afirmado que determinado antecedente produz sempre determinado consequente, sem levar em consideração as circunstâncias acessórias, essa lei — digo —, que era apenas aproximada e provável, deve ser substituída por uma outra lei, mais aproximada e mais provável, que faz intervirem essas circunstâncias acessórias.”

Eis onde Poincaré acerta!

Havendo a biopoese (o que “quebraria” a “lei de biogênese”, digamos grosseiramente uma primeira “geração espontânea”), estabeleceu-se um novo conjunto de lei de comportamento do natural (os seres vivos) dentro do “uso” das leis físicas, e o processo evolutivo seguiu-se pelos períodos geológicos.

Mas notemos que a primeira “geração espontânea” não necessariamente é única, e podemos ter passos em paralelo nos primeiros momentos de formação da vida, tanto de moléculas replicantes como nas primeiras “proto-células”, mas não temos hoje evidência alguma que o processo, a não ser nesses momentos extremamente iniciais, tenham sobreviventes hoje vivos (e melhor seria dizer “ativos”).
“Portanto, recaímos sempre no mesmo processo que analisamos acima, e se a humanidade viesse a descobrir alguma coisa desse tipo, não diria que foram as leis que evoluíram, mas sim as circunstâncias que se modificaram.”

Como vemos ao longo desse tratamento desse texto de Poincaré, como sempre, os pensadores do passado, dadas suas limitações de informações, mostram-se incapazes de tratar certos aspectos da natureza, de onde não podem construir afirmações científicas, nem como divulgação de certos conceitos.

Lembremos a feliz “molécula da genética” (o conceito) de Erwin Schrödinger, em “O que é vida?”, mas o relativamente infeliz termo “cristal” e o contexto biológico no qual o coloca:

“A química orgânica, de fato, ao investigar moléculas cada vez mais complicadas, chegou muito mais perto daquele “cristal aperiódico” que, em minha opinião, é o portador material da vida. “

E mais adiante:

“Isso parece muito trivial, mas, na verdade, acredito, toca o ponto central. Mecanismos são capazes de funcionar “dinamicamente" porque são constituídos de sólidos, que são mantidos em sua forma pelas forças de London-Heitler, fortes o suficiente para evitar a tendência à desordem do movimento térmico à temperatura normal. Neste momento, acredito que algumas palavras mais são necessárias para descobrir o ponto de semelhança entre mecanismo e organismo. Ele se assenta, simplesmente, no fato de que o último também se vale de um sólido - o cristal aperiódico constituinte da substância hereditária, o qual muito se afasta da desordem do movimento térmico. Mas, por favor, não me acusem de chamar aos cromossomos "engrenagens da máquina orgânica" - pelo menos não sem uma referência às profundas teorias físicas sobre as quais se baseia a semelhança. “

Ref.: Schrödinger, Erwin. O que é Vida? O Aspecto Físico da Célula Viva Seguido de Mente. São Paulo: UNESP, 1997. ISBN 85-7139-161-0.

Porém, nos mesmos textos, encontramos a solidez de dois grandes pensadores em entender profundamente a Ciência de seu tempo, e fazer previsões, ainda que com imensas limitações, do que passaríamos em breve a conhecer, e por sorte e para nossa felicidade, os complementar e até os corrigir.

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